Patti Smith: “Não abandonem os livros”

«Please, no matter how we advance technologically, please don’t abandon the book. There is nothing in our material world more beautiful than the book», Patti Smith.

Há mais de 5 anos que não escrevia um texto para este blog. Não foi obra do acaso, mas sim uma consequência de ter-me obrigado a abrandar um pouco ritmo de trabalho nas últimas semanas. Quando finalmente posso «respirar», sinto o apelo imediato de me dedicar ao exercício terapêutico da escrita – que é o mesmo que dizer «conectar comigo própria».

Os meus motes para começar a escrever costumam ser músicas, livros ou artistas. Desta vez, não foi diferente: a admiração que sinto pela Patti Smith veio resgatar-me deste torpor muitas vezes induzido pela hiperprodutividade e pela atenção fracionada – que tantas vezes acaba por ficar amalgamada e com poucas pausas para descanso.

Esta admiração ou encantamento começou quando ainda nem se quer conhecia a obra da Patti Smith. Durante anos, vi as capas dos álbuns, ouvi as entrevistas em diferentes meios, li as críticas feitas à sua obra musical e literária, mas só depois de várias fases de «aprovação» é que me dispus a conhecer o seu acervo musical. Ainda não ouvi tudo. Conheço apenas algumas músicas originais e outras tantas covers, mas posso confirmar que o que verdadeiramente me seduz é a honestidade que Patti Smith exala em cada gesto e palavra.

Creio entender melhor agora o efeito que esta pessoa tem em mim: é que ouvi-la falar de forma tão descontraída e apaixonada das suas vivências, faz-me conectar com o meu «eu» adolescente. Sinto esta conexão quando ela fala, de uma maneira quase que infantil, do amor que sente pelos livros, não só pelo seu conteúdo, mas pelo objeto em si. Sinto-a quando descreve como se encantou por Rimbaud e por outros poetas malditos do século XIX, assim como por Walt Whitman, numa altura em que já todos veneravam os poetas da beat generation. A nível musical, sinto-a quando refere a influência da poesia de Jim Morrison e a vontade inebriante de abrir as suas portas da perceção e expandir-se para além do evidente.

Por mais que soe a cliché, a Patti Smith é como a corrente que leva a minha âncora às profundezas do meu «eu». Ouvi-la falar, é o bálsamo de ser compreendida e o reavivar das certezas firmes que tinha quando era adolescente. Estranhamente, nessa altura não me sentia à deriva nem sequestrada pelo digital. Já sabia quem era e quem queria ser. Há dias, como hoje, em que me volto a descobrir, aqui, ancorada pela escrita. O que encontro não é necessariamente aquilo que sempre sonhei ser: alguém parecido à Patti Smith. Muito à quem, portanto. Mas conformo-me com admirá-la.

Com quase 80 anos, a sua identidade como artista, mulher, poeta e pioneira do punk-rock continua impoluta. Gosto de pensar que isso teve muito que ver com o facto da Patti ter rejeitado o escapismo oferecido pelas drogas pesadas e pelo álcool, e escolhido o escapismo oferecido pelos livros. Uma integridade que se revelou desafiante e constante desde que chegou ao degradante, mas vibrante, Chelsea Hotel de finais dos anos 60, quando ainda trabalhava em livrarias.

A humildade com que encara o seu papel de artista em nada a impediu, nem impede, de ter amor-próprio e de demonstrar até um gosto em ser fotografada, por exemplo. Porém, sem artifícios, com a naturalidade de quem se sente confortável com a própria pele. Não se pode esperar outra coisa de um cabelo grisalho e desalinhado, calças de ganga gastas e botas velhas, que não verdade nua e crua. Como não admirá-la?

Patti Smith transmite-me confiança e transparência. Algo que também se traduz na forma como recebe os outros e se mostra grata pelo reconhecimento que lhe tem sido dirigido ao longo das décadas, bem presente no revivalismo levado a cabo por artistas de gerações mais recentes, tanto na música como na moda. Basta ver quem teve o privilégio de cantar em homenagem a Bob Dylan na entrega do Prémio Nobel, em 2016.

Só que não é só na música. Para alguém que passou metade da sua vida a ler, ela sempre quis poder devolver algo escrito ao mundo. Algo que inspirasse os outros, tanto quanto outros a inspiraram a ela. Foi deste sentimento que surgiu a sua obra-prima, vencedora do National Book Award, «Just Kids», em 2010.

Tudo isto serve para dizer: volta ao livro, lê, solta a âncora e escreve. Na minha experiência, é nesta ordem de eventos que, de facto, consigo marcar um encontro comigo própria e situar-me na minha latitude, coisa que só é possível depois de conseguir encontrar os meus pontos cardiais: a música e os livros.

Para já, ando a reler as aventuras de Sherlock Holmes. Gosto da lógica divergente que, invariavelmente, converge para uma única solução. É por isto que, quando preciso de voltar ao «livro», começo sempre por Conan Doyle. Dá-me conforto e a segurança para continuar a seguir – e a partilhar – o conselho da Patti Smith: «don’t abandon books».

P.S.: Publico este texto sem assistência da inteligência artificial e sem grandes pretensões de coerência e correção. É que ser livre não é só podermos escrever sobre quem admiramos, mas é também poder escrever com as palavras erradas. Já dizia, pois claro, a Patti Smith.

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