“A Jangada de Pedra” de José Saramago: o Homem como animal fabulador

“O homem é um animal fabulador por Natureza.” U. Eco

O Romance Histórico

Apesar de ser uma obra repleta de momentos fabulosos – no estrito sentido da palavra –, “A Jangada de Pedra” baseia-se também em aspetos verosímeis, ao enquadrar-se num contexto político, ideológico e social muito específico: a adesão de Espanha e de Portugal, em 1986, à então CEE. À semelhança de algumas das obras de Eça de Queirós e Almeida Garrett, Saramago interroga o Portugal dessa época e constrói uma crítica sob uma forma irónica e algo subversiva. Saramago demonstra uma consciência crítica em relação ao desenvolvimento social, económico e cultural de Portugal nos anos 80. É evidente a sua preocupação pela posição da Península Ibérica na Europa e pela identidade dos povos ibéricos. Apesar de se tratar de uma narrativa ficcional, cuja ação decorre num passado histórico específico, Saramago não se revia no rótulo de “romance histórico” porque acreditava que ao escrevermos sobre o passado estamos a observar os acontecimentos com as lentes do presente, isto é, estamos a recriar os acontecimentos e a transformá-los em ficção. Como se isso não bastasse, ainda temos a linguagem que, como mediadora, é ela própria transformadora da realidade que narra.

«Cada um por seu lado, em Portugal, em Espanha, os governos vieram ler comunicados tranquilizadores, garantiram formalmente que a situação não autoriza excessivas preocupações, estranha linguagem, e também que se encontravam assegurados todos os meios para salvaguarda de pessoas e bens, enfim, foram à televisão chefes de governo, e depois, para aclamação dos ânimos inquietos, apareceram também o rei de lá e o presidente de cá, Friends, Romans, countrymen, lend me your ears, disseram eles, e os portugueses e espanhóis, reunidos nos seus fóruns, responderam a uma só voz, Pois sim, pois sim, words, words, nada mais que words.» JP, p. 43

Influenciado por pensadores como Foucault e Derrida, Saramago defendia que a própria História é ficção. Daí que se torne lícito aproximar a figura do historiador à do ficcionista. A justificação que Saramago dava para tal desconfiança nesse rótulo é a de que “romance” e “memória” são duas entidades indissociáveis. Isto quer dizer que a memória de um autor está sempre servir de base subjetiva na construção do romance, distorcendo necessariamente os factos históricos. O que, como já previra Nietzsche, será o mesmo que dizer que qualquer significado é a perspetiva de quem pensa.

«Pela primeira vez um arrepio de medo perpassou na península e na próxima Europa. Em Cerbère, bem perto dali, as pessoas, correndo para a rua premonitoriamente como o tinham feito os seus cães, diziam umas para as outras, Estava escrito, quando eles ladrassem acabava-se o mundo, e não era precisamente assim, escrito nunca estivera, mas nos grandes momentos precisamos sempre de grandes frases, e esta, Estava escrito, não sabemos que prestígio tem que ocupa o primeiro lugar nos prontuários do estilo fatal.» JP,  p. 30

O poder da palavra

Frequentemente encontramos em “A Jangada de Pedra” reflexões do narrador sobre a linguagem. Os “jogos de linguagem” (Wittgenstein) são constantes e percebemos que Saramago pretende dar à linguagem o papel de mediadora entre o plano histórico e o plano fabuloso. Este tipo de reflexões leva-nos a pensar em “A Jangada de Pedra” como um meta-texto, onde se questionam os meios segundo os quais a linguagem opera no mundo e no próprio texto, com todas as consequências que isso pode trazer para a perceção que os homens têm da realidade. O certo é que existem várias passagens e elementos do texto que refletem a existência dessa ligação entre os planos fabuloso e histórico, onde o fabuloso nos oferece uma perspetiva da História, não como ela aconteceu, mas como gostaríamos que tivesse acontecido. Para tal façanha, Saramago recorre à subversão através do signo linguístico. Alargando os horizontes do signo linguístico, subvertendo-o, metamorfoseando-o, Saramago criou novas possibilidades de mundos, ainda que sejam mundos exclusivamente linguísticos, mas não por isso menos verdadeiros nos seus conceitos.

«É que, e neste ponto fatal a mão hesita, como irá ela escrever, de plausível maneira, as próximas palavras, essas que tudo sem remédio irão comprometer, tanto mais que muito difícil se vai tornando já destrinçar, se tal se pode em algum momento da vida, entre verdade e fantasias. É que, concluamos o que suspenso ficou, por um grande esforço de transformar pela palavra o que talvez só pela palavra possa vir a ser transformado, chegou o momento de dizer, agora chegou, que a Península Ibérica se afastou de repente, toda por inteiro e por igual, dez súbitos metros, quem me acreditará, abriram-se os Pirenéus de cima a baixo como se um machado invisível tivesse descido das alturas, (…)» JP, p.36

Em vez de se tratar o assunto da adesão de Portugal à CEE e teorizá-lo ou descrevê-lo como todos esperamos que os assuntos históricos sejam tratados, Saramago propõe a hipótese inversa do que estava a acontecer em 1986: a separação da Península Ibérica do resto da Europa. A este processo chamou Berrini de “princípio de inversão”. Neste ponto podemos estabelecer uma relação com a epígrafe “Todo o futuro é fabuloso” e, por sua vez, depreender que o autor terá impresso na forma de um texto uma das possibilidades da História, possibilidade essa que, fora desse texto, só poderia ter acontecido se há muitos milhões de anos e, acidentalmente, algo tivesse mudado o curso dos fenómenos naturais, numa cadeia de causas e efeitos que tivessem interferido na deriva continental e a Península Ibérica tivesse ficado separada da Europa.

«Quando Joana Carda riscou o chão com a vara de negrilho, todos os cães de Cerbère começaram a ladrar, lançando em pânico e terror os habitantes, pois desde os tempos mais antigos se acreditava que, ladrando ali os animais caninos que sempre tinham sido mudos, estaria o mundo universal próximo de extinguir-se.» JP, p.9

Todo o acordo linguístico é resultado da passagem dos séculos e do deslocamento do Homem na História. São estabelecidos consensos durante essa trajetória orgânica, social, intelectual, ética, moral e, por fim, cultural. Mas a fenda que separa a península ibérica da europa simboliza, antes de tudo, uma rutura do contrato linguístico, isto é, o contrato da indissociabilidade entre significado e significante. Roland Barthes fala-nos da “teoria libertadora do significante” que “deve ajudar a libertar o texto – todos os textos – das teologias do significado transcendental.” Quer isto dizer que é preciso libertar os textos de conceitos predefinidos pela normatividade. Se tivermos em atenção a carácter bifacial do signo linguístico e que “significado” e “significante” sempre foram considerados indissociáveis, esta fenda é digna de causar semelhante pânico e acabar com o mundo tal qual foi concebido pelo homem. O que Saramago faz é dar ao “significante” a liberdade de poder associar-se a um novo “significado”. Depois de se ter efetuado a rutura entre significado e significante, Saramago dá ao significante una nova possibilidade, um futuro alternativo.

«Aceitar-se-á, portanto, como natural e legítima, a dúvida de ter sido aquele risco no chão, feito por Joana Carda com a vara de negrilho, causa direta de se estarem rachando os Pirenéus, que é o que tem vindo a ser insinuado desde o princípio.» JP, p. 31

Assim, o nascimento do texto em “A Jangada de Pedra” relaciona-se com esse momento de criação de um mundo novo, nascimento esse que ocorre na primeira palavra que estabelece a produção do discurso. O livro, à semelhança da jangada de pedra, é o significante que transporta novos significados, que tem a força de desafiar a realidade, a lógica de um mundo instituído e que o leitor conhece bem e fazendo jus à observação de Umberto Eco: «Eu penso que para contar uma história há que começar por construir um mundo».

História, Ficção e Desconstrução

Sob a luz da teoria da desconstrução, podemos compreender melhor ainda a desconfiança de Saramago, pois toda a história que resulta da narração de factos passados é, em grande parte, ficção. Daí a pergunta da modernidade: o passado aconteceu tal e qual como nos contam os livros de História? Não existirá pelo meio uma “vontade de poder”? Os feitos históricos nunca existem em si. Isto quer dizer que o mundo que consideramos verdadeiro não é uma realidade originária, mas unicamente uma fábula criada por uma vontade de poder determinada, ou seja, uma fábula criada pelos que saem vitoriosos. Foucault, historiador e filósofo do pensamento, elaborou a chamada «teoria genealógica» que aborda a relação dos sistemas discursivos às práticas não discursivas de exercício do poder social. Ora, não é possível, neste ponto, contornar a importância que Nietzsche teve no estudo das genealogias e, por isso mesmo, Foucault não se furta a uma apologia às teorias genealógicas originárias de Nietzsche afirmando que «…todo e qualquer discurso é uma clara tentativa de exercício de poder social». Assim, os estudos genealógicos de Foucault chamam a nossa atenção para a relação entre o conhecimento e o poder, ou seja, todo o conhecimento foi concebido para se ligar, essencialmente, a um sistema de controlo social. Por outro lado, a sensibilidade humana sente uma necessidade voluntária de ficções e, involuntariamente, verga-se a esses instrumentos de controlo social. Também precisa de fórmulas e de signos com a ajuda dos quais se ordena e reduz a complexidade de um mundo caótico.

« […] no teatro doméstico que é a televisão, no pequeno retângulo de vidro, esse pátio dos milagres onde uma imagem varre a anterior sem deixar vestígios, tudo em escala reduzida, mesmo as emoções. […] Além disto, não nos esqueçamos de que em grandes partes da península, nos seus interiores fundos e profundos, onde os jornais não chegam e a televisão custa a entender, havia milhões, sim, milhões de pessoas que não percebiam o que se passava, ou tinham uma ideia vaga, formada apenas de palavras cujo sentido se compreendera por metade, ou nem isso, tão inseguramente que não se acharia grande diferença entre o um julgava saber e o que o outro ignorava.» JP, p. 37

Conclusão

Em “A Jangada de Pedra” é possível observar uma constante dialética entre uma realidade física, existente no mapa, que podemos testemunhar, e uma realidade que pertence a um plano fabuloso, uma transfiguração do real. Esta dialética é possível através de um vaivém de jogos linguísticos, intermediados pelas personagens que têm como função a de serem pontífices entre o mundo fabuloso e o mundo real. Esses mediadores são seres específicos da narrativa, feitos de palavras, é certo, mas por isso mesmo podemos afirmar que, em última instância, a linguagem é a mediadora de todas as relações. Assim, são as palavras que constroem a realidade tal e qual a conhecemos e, por isso, só a linguagem pode transforma-la, ou seja, só através da linguagem poderia ter ocorrido a separação da Península Ibérica do resto da Europa.

«Pensando bem, não há um princípio para as coisas e para as pessoas, tudo o que um dia começou tinha começado antes, a história desta folha de papel, tomemos o exemplo mais próximo das mãos, para ser verdadeira e completa, teria de ir remontando até aos princípios do mundo, de propósito se usou o plural em vez do singular, e ainda assim, duvidemos, que esses princípios não foram, somente pontos de passagem, rampas de escorregamento, pobre cabeça a nossa, sujeita a tais puxões, admirável cabeça apesar de tudo, que por todas as razões é capaz de enlouquecer, menos por essa.» JP, p. 50

Saramago transformou-se no arquiteto de um novo mundo, onde subverteu as leis da geofísica ou, de uma maneira geral, todas as leis racionalmente instituídas. Depois de ler “A Jangada de Pedra” percebemos que tudo aquilo que está ao alcance das nossas lentes telescópicas, tudo o que o Homem nomeou e classificou até hoje pode ser abalado pela abertura de uma fenda. Foram necessários personagens e acontecimentos insólitos para subverter as leis da lógica e da física, para desconstruir e alargar as fronteiras de um imaginário que, através do texto, tem a audácia de se estender ao mundo inteiro. Não fosse o imaginário de Saramago e a Península Ibérica nunca se teria desprendido dos Pirenéus e viajado rumo a uma nova possibilidade, a um lugar onde mora ainda bem enraizado o mito e a fantasia, aspetos estes que contribuem para o facto de este não ser nem romance histórico, nem meramente ficção, mas sim uma fábula. Enfim, um convite para dar asas ao animal fabulador que existe em cada um de nós e, se «os limites da minha linguagem significam os limites do meu mundo», vamos dar ao mundo uma nova possibilidade ao dar novas possibilidades à linguagem.

Versão inglesa:

“The Stone Raft” by José Saramago: man as a fabulator animal

Versão portuguesa:

“A Jangada de Pedra” de José Saramago: o Homem como animal fabulador

Bibliografia:

  • Saramago (1986), A Jangada de Pedra
  • Foucault (1966), As palavras e as coisas
  • Derrida (1972), Estrutura, Signo e Jogo no Discurso das Ciências Humanas
  • Berrini (1998), Ler Saramago: o Romance
  • Barthes (1985), A aventura semiológica
  • Arrojo (1992), O signo desconstruído — implicações para a tradução, a leitura e o ensino.
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